"De uma estudante Autista", de Lua Eva Blue
O Jornal Hermes, hoje traz-te um texto sobre a perspectiva de como é ser estudante autista na UC. Lua Eva Blue, estudante do curso de História de Arte com menor em Estudos Artísticos, traz uma luz nova sobre o tema dos alunos com NEE ( Necessidades Educativas Especiais), um tema cada vez mais discutido dentro da Universidade.

No ano lectivo de 2020/2021 inscrevi-me em 10 cadeiras. Só consegui fazer 3, com uma média de 11. Em 2021/2022, passadas algumas sessões de psicologia, psiquiatria, apoio psicopedagógico, várias avaliações para receber as Necessidades Especiais, e meses de antidepressivos, das 11 cadeiras a que me inscrevi, consegui fazer 7 com uma média de 14. Por vezes sair de um buraco tem este aspecto.
No secundário não me foi recomendado ter o estatuto em si de estudante com Necessidades Educativas Especiais (NEE) porque já tinha chegado lá "sem precisar" (questionável). Apenas tive medidas em Educação Física, embora não fossem seguidas por motivos de negligência. Isto fez-me pensar que também não precisaria de apoios na Universidade, mas cinco anos depois, aqui estou a tentar completar uma licenciatura de apenas três.
Sempre dependi dos meus colegas para apontamentos, especialmente quando a bibliografia é menos acessível e os professores ligam ideias de forma muito própria. Conseguisse escrever parágrafos inteiros nas aulas como vejo outros a fazer, pouparia centenas de horas de estudo por semestre.
Canso-me mais facilmente com tudo o que faço, desde reuniões a idas e voltas porque me esforço mais para me concentrar e para estar em ambientes com ruído ou luminosos (muitos autistas têm problemas com sobre-estimulação, alguns até ao nível de cheiros e paladar, embora todos tenhamos características diferentes). Até já recebi olhares de estranheza e curiosidade por usar abafadores de ruído nos cortejos académicos, incluindo alguém que, por influência dos 'copos', mos tirou dos ouvidos e gritou "Estás de fones?".
Há vários anos que todo o conteúdo que produzo e consumo sobre o tema do autismo vem da perspectiva de autistas e algumas famílias (exemplo dos "Monólogos de Mulheres Autistas" do Centro de Estudos Sociais da UC). No entanto, os últimos tempos têm sido interessantes na medida em que comecei a assistir a mais discussões sobre estudantes com NEE do ponto de vista dos professores e instituições em si. De repente, estou a lidar com outro mundo: em sessões de esclarecimento sobre autismo, os estudantes ao meu lado não dizem "nós", dizem "essas pessoas". Numa passada sessão sobre NEE na Universidade, disseram "Os autistas são os mais complicados", linguagem que «nós» também usamos para certos professores. Conhecimentos que para nós são básicos e adquiridos há décadas são novidade para muitos outros: quem se iria lembrar que eu uso chapéu nas aulas para evitar a luminosidade? Eu nunca colocaria vidros nas mesas do anfiteatro III pois refletem a luz para os olhos. Mas em Letras, fazendo História da Arte com uma menor em Estudos Artísticos, cursos muito ligados ao 'sentir', tenho de aprender como «a maioria» age, sente e usufrui dos espaços para saber interpretar e analisar peças desde fotografias a edifícios: A existência de música de fundo em supermercados dificulta-me muito a vida por ter de me concentrar enquanto estou num ambiente sobre-estimulante - levo os abafadores para fazer compras. Mas numa cadeira sobre música, quando o professor perguntou a sua utilidade, alguém respondeu "para «nos» acalmar".
A parte mais difícil, mesmo na universidade, foi perceber que as dificuldades existiam. Poderá parecer estranho a alguém sem deficiências invisíveis, mas reparem - o nosso cérebro, só nos tem a nós próprios como referência.
Não pretendo dar a entender um binómio falacioso de «nós e outros» mas creio que consegui ilustrar o que pretendo dizer. Pois afinal de contas, sendo «estudante autista», não tenho apenas as dificuldades de «autista». Algumas das adversidades que tive na universidade não se diferenciam assim tanto da de muitos estudantes, e no entanto, estou em maior desvantagem com as mesmas dificuldades: Bolsa em atraso? Fome? O mercado de trabalho já não é simpático para autistas em geral, muito menos para estudantes autistas sem experiência e com limitações de horário, o que seria todo um outro tópico. O "plano B" caso a faculdade não funcionasse era voltar para a minha pequena vila de 1000 habitantes e trabalhar na loja da minha mãe, mas a crise fechou o negócio. Burnout? O abandono do percurso académico esteve nas minhas considerações. Sendo que me esforço relativamente mais para tudo, que as dificuldades económicas são um dos maiores riscos para doenças mentais, e que há sintomas mais prevalentes em autistas quando adquirimos alguma, não demorou muito até desenvolver um caso grave de ansiedade que me impedia de estudar caso a mesa não estivesse numa certa disposição em relação à porta e janela (não possível no quarto da altura) e no máximo me fazia partir coisas sem querer porque o meu corpo abanava quando eu estava num cenário dentro da mente e fora da realidade. A vida é feita de interseccionalidades.
Aproveito este pequeno nível de visibilidade para fazer um pedido. Muitos de vós na FLUC são futuros professores de ensino básico e secundário. Dada a minha má experiência com bullying e negligência por parte de vários professores que tive, peço: Usem a vossa voz contra outros professores. Infelizmente, nas escolas as crianças não têm tanto poder de protesto como os universitários. Ensinem-nas a reportar más atitudes, mas mais importante, ensinem-lhes quais são.
- Lua Eva Blue