Ana Carolina
Um dia sonhei em ser professora. Levantei-me cheia de garra para abraçar essa profissão que tanto me dizia. Que gosto de dava imaginar-me numa sala cheia de cabecinhas fervilhantes de novas ideias, de novos mundos que eu lhes dava a conhecer a cada palavra, era como se lhes condimentasse a inteligência com saber, a melhor especiaria para ouvir e chorar por mais informações. Tecia a cada aula, tal Penélope tecia a túnica para Laertes, tantas histórias da nossa História, tantas peripécias na Matemática, tantas descobertas nas Ciências.
Ia a pegar na mochila já
cheia de energia para ir para a escola quando uma voz sibilante galgou da
televisão. Afirmavam com toda a certeza que nada podiam fazer pelos
professores, que não cederiam aos protestos, que a carreira ficaria congelada,
que os salários já eram bons o suficiente, que a problemática da distância dos
lares não poderia ser mudada. Endireitei a mochila nas costas e fiquei sem
entender. Como assim quem manda não pode mudar o que precisa de mudança?
Naquela altura não podia concordar mais com o Camões, sim os tempos mudam e com
eles as vontades, que deveriam de ser soberanas.
Quando cheguei à escola, os portões estavam fechados. Cartazes
pendurados no gradeamento gritavam palavras de protesto. Quase que conseguia
ouvir as vozes dos professores, abafadas pelas vozes dos que nos governam como
quem fala por cima e nos diz que não sabemos nada do que estamos a dizer.
Abanei a cabeça entristecida e pensei com os meus botões. Como é possível que a
base da nossa sociedade seja tão maltratada? Como podemos nós concordar com um
governo que despreza de sorriso no rosto a profissão que nos forma, que nos
condimenta a inteligência com especiarias tão ou mais raras que as encontradas
na Índia ? Um dia sonhei em ser professora, mas no fui acordada de repente, tal
máquina de eletrochoque, com um pesadelo, onde me via a dar aulas a mil quilómetros
de casa, dentro de uma sala insalubre. Os meus alunos não gostavam do que eu
estava a tentar ensinar. Diziam com ar de desdém que a matéria era atrasada
para o tempo, que não fazia sentido dar-se calhamaços de livros escritos por
pessoas que já tinham morrida há séculos. Nada os atraía. Nada lhes dava ânimo
para aprender. Saía ao fim do dia com uma mala de rodas, tipo as de viagem,
cheia até cima com tabelas, grelhas, papelada que para nada servia, apenas para
cansar a minha cabeça de professora.
Não, nunca sonhei em estar longe da minha família. Não, nunca sonhei sobreviver dentro de um quartinho que rivalizava com o Hades onde Ulisses passou. Ulisses foi lá para buscar informação sobre como regressar à sua amada Ítaca.
Mas não me vejo em Ulisses. Não, não consigo tirar a solução para ultrapassar este degredo em que a profissão de professor está mergulhada.
Sim, agora sou professora porque o sonho comanda a vida "e sempre que o homem sonha, o mundo pula e avança". Sempre me avisaram que eu ia passar por isto, mas eu tinha esperança que as coisas mudassem. Não mudaram. Mas tenho esperança que mudem. Ulisses não desistiu em vinte anos, porque haveria eu de desistir. Até lá, eu e os demais professores seremos como os jornaleiros - vamos apregoar as nossas necessidades até que alguém compre as nossas súplicas e espalhe a notícia. Um dia, eu sei que um dia vou ser a professora que sonhei. Vou condimentar a cabecinha fervilhante dos meus alunos e mostrar-lhes que é bom aprender Matemática, História, Português. E que é bom ser professor.
